segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O ofício do Ator

Artista é bicho inquieto, curioso, atento...estou lendo uma série de teses e relatos e opiniões...e conclusões...e vou aos poucos postando aqui parte do que tenho lido, pesquisado e observado...



Quem é mais artista do que o ator? A matéria plástica a que ele imprime a sua concepção, o seu sentimento criador, não é menos digna do que o mármore, por ser o conjunto das expressões humanas.
(Joaquim Nabuco, Escritos e Discursos Literários, p. 40)


A obra de arte é uma complexa composição de forma e matéria. A maneira mais simples de ver isto é no clássico exemplo do oleiro, que imprime a forma do vaso na argila.

Matéria é tudo aquilo de que alguma coisa é feita. Um quadro de Picasso é feito, digamos, de madeira, tecido, tintas. Uma sinfonia de Beethoven é feita dos sons dos diversos instrumentos e das execuções dos músicos. Um filme de película e de luz. (1)

Forma é a maneira como a matéria é organizada, sua estrutura. É uma forma o que o escultor imprime ao bronze. São formas o que Picasso inscreve com tinta em suas telas. A disposição das palavras é a forma do poema. De outro ponto de vista ela é o princípio estrutural da obra (a concepção, a idéia – eidos). A forma não é uma figura estanque; ela tem um dinamismo interno que organiza a matéria conformando assim a obra.

E no caso do ator? O que é matéria e o que é forma na atuação?

A matéria do ator é fundamentalmente seu próprio corpo. As ações que ele realiza conformam esse corpo.

Sua matéria é um organismo vivo, composto por tecidos e órgãos, com um cérebro capaz de armazenar e processar um número incalculável de informações. Por não ser exterior ao ator – ao contrário, o corpo é o próprio ator –, essa materialidade está em constante interação com o psiquismo. Um movimento corporal terá ressonâncias na memória e nos sentimentos, assim como uma lembrança ou um pressentimento têm ressonâncias corpóreas.

A forma de uma atuação é a composição das diversas ações realizadas. É a estrutura de tensões e relaxamentos musculares, o jogo de vetores e contra-vetores que o ator executa com seu corpo, e que resultam em um texto legível.

Podemos, numa outra instância, considerar todas as possibilidades de ação corporal como matéria para o ator. Essa ação, que era forma no extrato anterior, faz parte agora de um novo composto, o corpo agindo, que passa a servir de matéria para a criação poética (2). As diversas maneiras de olhar, por exemplo, apresentam-se ao ator como opções para a composição da cena. Ao realizar uma dessas possibilidades no contexto da cena, ele cria uma nova forma, agora no plano ficcional.

O primeiro extrato é concreto, o segundo abstrato; as ações do ator pertencem ao primeiro, as da persona (3) ao segundo. Fazendo uma analogia com a literatura, as ações corporais correspondem às palavras, as ações ficcionais ao significado.

Quando por exemplo um ator representa Otelo assassinando Desdêmona, o que acontece concretamente é uma série de movimentos e tensões realizados pelo corpo do ator em relação com a atriz e com a corporalidade da cena como um todo. O assassinato de Desdêmona (e todas as “realidades psíquicas” que o acompanham) se dá num plano ficcional, espectral. Ou, dito de outra maneira, o assassinato se dá concretamente na imaginação dos artistas e dos espectadores envolvidos na representação.

A forma da obra do ator é então, do ponto de vista da encenação, a composição das ações ficcionais realizadas pela persona; do ponto de vista da atuação a composição das ações corporais realizadas pelo próprio ator ao longo da encenação.

Uma vez que a atuação (como todas as artes espetaculares) só existe enquanto está sendo realizada diante de um público, a sua materialidade não se limita às ações corporais – ela inclui a própria pessoa do ator. O que o espectador vê não é apenas a persona agindo. Ele vê o ator “jogando” (realizando) essa ação dentro do contexto poético. E vê ainda a relação pessoal que o ator estabelece com a poética e com o conteúdo da obra, vê o sentido que ela faz para ele.

A arte da representação é reveladora. Todo ação realizada em cena nos fala não apenas dela mesma; ela também nos fala do homem que realiza essa ação. O ofício do ator é, como dizia Dostoiévski do seu ofício de escritor, “mostrar o homem no homem”. Através da ação.

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