quinta-feira, 3 de junho de 2010

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PROCESSO COLETIVO E PROCESSO COLABORATIVO:
HORIZONTALIDADE E TEATRO DE GRUPO


André Carreira e Daniel Olivetto. Respectivamente: Professor do Programa de Pós-Graduação em Teatro (Mestrado da Universidade do Estado de Santa Catarina) e diretor do Grupo (E)xperiência Subterrânea. PQ CNPq; e Bolsista de Iniciação Científica do CNPq, graduando em Artes Cênicas pelo CEART- UDESC, ator e diretor da Cia. Experimentus (Itajaí – SC).

Atualmente, no seio do movimento teatral da América Latina, a expressão teatro de grupo tem uma presença que indica novas tendências organizacionais que têm constituído um campo específico do fazer teatral. Diferentemente das estruturas grupais características do teatro dos anos 70, e começo dos anos 80 do século XX, onde o grupo definia-se como espaço de coletividade e, principalmente, de contestação aos regimes autoritários, o teatro de grupo nos nossos dias parece representar um modelo que se define mais pela articulação de projetos cênicos.

No caso do Brasil, o movimento do teatro de grupo foi o responsável pela introdução de prática de criações coletivas (o processo coletivo). Dessa forma, os grupos aparentemente levaram o ator para o centro dos processos criativos. Posteriormente a este fenômeno se deu, no período imediato da pós-ditadura, a chamada década dos encenadores. Já no começo dos anos 90, houve uma retomada das criações coletivizadas, no entanto, neste momento estas prática receberam o nome de processo colaborativo.

O teatro de grupo, e a implementação de processos coletivizados de produção e criação, têm se caracterizando pela contestação e resistência. Conseqüentemente, a reivindicação da coletividade representa a construção de um lócus de um teatro que se opõe radicalmente ao teatro de elenco e, fundamentalmente, ao ‘sistema da fama’, isto é, ao império da celebridade por sobre o discurso criativo da cena.

No seio das iniciativas (1) levadas a cabo pelos pesquisadores do Projeto O Teatro de Grupo e a Construção de Modelos de Trabalho de Ator, durante os anos de 2004 e 2005, foram coletadas informações que revelam diversas semelhanças no que diz respeito ao passado e ao contexto atual do teatro de grupo brasileiro. Entre estes elementos podemos citar: o ideal coletivo; projeto estético definido; necessidade da manutenção de um núcleo estável de pessoas; existência de comunhão e afetividade entre os membros do grupo; necessidade da coletividade; desenvolvimento de pesquisas de linguagem; tomada de decisões horizontalizada, e a presença de uma figura de diretor menos forte; e, principalmente, a existência de um trabalho continuado que se estenda além das montagens de espetáculos, configurando aquilo que seria definido como um trabalho colaborativo.

Esse conjunto de elementos representa um referencial para se delimitar a idéia de teatro de grupo que é reivindicada por um grande número de projetos coletivos que estão em funcionamento no país. O que caracteriza boa parte dos grupos teatrais atualmente é a busca por formas de organização do trabalho grupal que se sustentem em processos de pesquisas atorais, como elemento de base para a criação do texto dramático, e do espetáculo, de um modo geral. Cabe destacar, nestas práticas grupais, uma valorização da figura do ator na construção do objeto textual e na própria definição dos rumos da encenação em sua totalidade. Isso repercute de forma direta na instauração de processos criativos que adquirem a forma de processo coletivo ou de processo colaborativo. Nestes dois modos de trabalho, o ator passa a ser fundamental na criação da dramaturgia, e conseqüentemente cumpre uma função central na criação do espetáculo.

A pesquisadora Adélia Nicolete, referindo-se ao processo coletivo no Brasil, afirma que este diz respeito mais ao teatro da época da ditadura militar. Segundo ela, este tipo de criação era um processo “onde a figura do diretor como condutor absoluto foi questionada ou abolida e o intérprete tomava o centro do processo e dele irradiava a obra” (2003). Neste sentido, era comum que se apagassem as assinaturas individuais para a criação, isto é, a criação do texto e a direção passavam a ser assinadas pelo grupo.

No começo dos anos 90, começa a aparecer o uso do termo ‘processo colaborativo’, que segundo Antonio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem, seria “o compartilhamento da criação pelo dramaturgo, diretor, ator, os outros criadores, sem uma hierarquia nessa criação. O diretor não é mais importante que o dramaturgo, o dramaturgo não é mais importante que o ator e assim por diante” (Araújo apud Fischer 2005). O que o difere do processo coletivo, seria centralmente o fato de cada indivíduo assinar sua função, ainda que todos discutam os aspectos relativos ao trabalho dos outros. Portanto, no processo colaborativo, nos momentos de tomada de decisões polêmicas cada um responde por sua respectiva área, dando a ‘palavra final’.

Luís Alberto de Abreu, que tem uma extensa prática como dramaturgo, inclusive no momento de gênese do processo colaborativo, expõe uma possível evolução deste conceito:

"O processo colaborativo provém em linhagem direta da chamada criação coletiva, proposta de construção do espetáculo teatral que ganhou destaque nos anos 70, do século 20, e que se caracterizava por uma participação ampla de todos os integrantes do grupo na criação do espetáculo (...) A criação coletiva possuía, no entanto, alguns problemas de método. Um deles era a talvez excessiva informalidade do próprio processo. Não havia prazos, muitas vezes os objetivos eram nebulosos e a experimentação criativa era vigorosa, não havia uma experiência acumulada que pudesse fixar a própria trajetória do processo". (FREITAS, 2004)

A denominação processo colaborativo é recente e, segundo Eduardo Freitas, cabe ressaltar que “não é exclusiva do dramaturgo [Abreu], pois resulta de uma prática adotada em fins da década de 90 por grupos de teatro de São Paulo, principalmente, e por dramaturgos como Fernando Bonassi, Hugo Possolo, Reinaldo Maia e Sérgio de Carvalho” (idem 2004).

Mas o que distinguiria o processo colaborativo da já experimentada criação coletiva? Segundo diferentes criadores, o processo colaborativo traz como diferencial a presença da figura do dramaturgo dentro do processo de trabalho. A ausência desta figura na criação coletiva, ou processo coletivo ocasionava, possivelmente, um acúmulo de experimentações cênicas que geravam discursos desorganizados, pela carência de um gesto que definisse um estrutura textual.

Neste sentido a experiência do Teatro Experimental de Cali (TEC), dirigido por Enrique Buenaventura, grande expoente da criação coletiva latino americana, indica que o lugar de criador da dramaturgia estava claramente preservado, e recaia sobre o próprio Buenaventura que reunia ainda o papel de diretor do grupo.

É interessante observar que se o ator pretendia, no processo da criação coletiva, fugir do predomínio do dramaturgo, e do texto ‘sacro santo’, no processo coletivo não pode escapar do olhar centralizador do diretor. Pode-se pensar que a predominância ora da figura do diretor, ora do autor, que interferem de forma decisiva nos processos propostos como experiência horizontais e frontalmente coletivizas, não esconderia realmente uma potencial deficiência desses modos coletivos. Seria inexorável para o funcionamento do espetáculo uma ação individual que organizasse finalmente o material coletivo?

A década de 80 caracterizou-se como um período de grande presença do diretor na definição dos rumos da cena nacional. O reaparecimento, nos anos 90, de um modo operacional baseado no coletivismo e na reivindicação de uma horizontalidade, que seria ponto de partida e ponto de chegada da criação, não poderia ser pensado como uma resposta à década dos encenadores? O centralismo do diretor aparentemente é discutido com a adoção de procedimentos e de poéticas horizontais. O processo colaborativo pode ser pensando também como um discurso político que ensaia um réquiem para os diretores, sem, no entanto, produzir nenhuma ação concreta que conduza ao enfraquecimento dessa figura que continua sendo fundamental na estruturação da cena nacional.

Essa horizontalidade experimentada tanto no processo coletivo como no processo colaborativo não implica no desaparecimento factual das funções que compõem os procedimentos básicos de criação teatral. Percebe-se que estas funções adquirem novas formas, pois são compartilhadas por diferentes membros dos grupos, ou até mesmo funcionam de modo rotativo. As funções estão presentes nos processos e são claramente reconhecidas pelas equipes de trabalho, mas tais funções não são assinadas por indivíduos que ficam particularizados na ficha técnica.

Os processos criativos aqui tratados direcionam o ator para um diálogo mais imperativo dentro da criação do texto e do conjunto do espetáculo. Isso determina que se reorganizem as posturas dos membros dos grupos de tal forma que os próprios fundamentos do espetáculo sofrem deslocamentos. Colocar o ator no centro do trabalho, como uma voz que define os fundamentos do mesmo, parece ser o embrião que permite surgir um gesto coletivo definido, que se diferencia das iniciativas criativas tradicionais.

Surge então a idéia de um ator ‘propositivo’. O estabelecimento de novos lugares para os sujeitos de uma criação, tal como afirma Antonio Araújo, faz desse ator, "um ator que já não é o ator da 'marca', é um ator propositivo, o ator que pensa, que discute os rumos do trabalho (...). Esse é um ator ligado ao conceito e discussão do trabalho com o todo. É um ator muito propositivo"(Araújo apud Fischer: 2005).

Neste quadro, rompe-se a autoridade da direção monolítica: o dramaturgo sai do gabinete e vai para a sala de ensaio; o ator discute a obra, dá idéias; e assim, todos os sujeitos do grupo passam a criar em conjunto. Parece haver aqui uma profunda relação com a idéia modelar do teatro de grupo. Trata-se, sobretudo, de uma nova organização do papel do ator na criação. De um executor de papéis ele passa a fazer parte da discussão da totalidade do espetáculo, daquilo que se quer ver em cena, coletivamente.

Em muitas produções do teatro de grupo existe uma ênfase nas criações que articulam processos coletivistas e isso reafirma a própria noção de grupalidade. O trabalho que reivindica uma poética do coletivo (mas não todo teatro um gesto coletivo?) busca um outro diálogo com o conjunto da criação teatral, e pretende desfazer as fronteiras que a rigidez das funções criativas estabeleceu no teatro.

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